Arquivo da tag: prosa poética

Do amor e suas implicações

Padrão


E qual amor que não dói, ainda que um pouquinho? É preciso ter coragem para amar e se permitir ser amado, para assumir o amor em todas as suas possibilidades e desafios, para sentir o amor com tal intensidade que seu peito parece que vai explodir, para querer chorar de felicidade a cada declaração, para sentir saudade a ponto de doer a garganta, a coluna, o pé… É preciso coragem pra viver, pra ser feliz, pra fazer escolhas, pra amar a si mesmo e se cuidar tão bem, pra permitir que o outro também te goste, te admire, te cuide – principalmente naqueles dias em que você não consegue fazer nada disso por si mesmo. O amor descoberto é como ganhar na loteria, ser correspondido é ganhar duas vezes! Com a maturidade adquirimos manias que a gente aprende a lidar com elas – as nossas e as dos outros -; e se juntarmos a isso o amor, a gente passa a entender que também ama a mania do outro, a ponto de respeitá-la e não querer mudá-la. E então enxerga que amar também é respeitar. Entende que só se muda por si mesmo, e não em função do outro, e que pra mudar qualquer coisa é preciso, de novo, de muito amor (que anda junto de sua companheira, dor) e coragem. Entende que é preciso fazer concessões, e assim a gente se sente feliz em poder fazê-las. Entende que é preciso sabedoria para aceitar o que o outro pode te oferecer, seja um pequeno gesto (pra ele) que se enche de um enorme significado (pra você ou pros dois); e que se deve oferecer ao outro a sua melhor parte, sempre, seja o último e delicioso pedaço de mamão da geladeira, um espaço no seu guarda-roupas, ou o seu melhor sorriso depois de um longo e cansativo dia de trabalho. E passa a amar as roupas não guardadas, o cheiro dele nas que estão usadas, a toalha molhada e o cheiro de banho que ele deixou em sua casa. E eu não sei como terminar este texto, pois o amor não tem fim, ele transforma, transborda, aquece, se molda, inspira, expira…

Ana.

Inspirada por este texto: https://www.facebook.com/SpottedUnB/posts/405924412932657

(Texto e foto: Ana Letícia.)

** Todos os direitos reservados à autora. **

Publicidade

Tela em branco

Padrão

E quando você acha que de tudo já aconteceu na sua vida, que já fez tanto e já conheceu lugares e pessoas de todo tipo, quando você acha que só teria mais uns poucos caminhos possíveis pra seguir adiante, vem a própria vida e te entrega uma tela em branco; então, o que fazer? Há quem procure uma caneta ou lápis de colorir, canetinha hidrocor ou giz de cera, há quem projete imagens animadas e sons, há até quem se cubra com o pano; já eu me jogo, me enrosco, deito e rolo e invento coreografias, figurinos e, então, me permito sonhar na tela grande, e quando me pego assim, sonhando de novo, entendo a grandeza do momento que se descortina a minha frente, o meu “momento tela em branco”; depois dele, o que existe são possibilidades, sonhos dentro de outros sonhos, e entendo que tudo (e nada) que vivi antes me preparou para o que virá, por ser inédito; protagonizo a pré-estreia de algo que ainda não aconteceu, que não sei o que é, pois a tela em branco da minha vida está começando agora.

Ana.

(Texto e foto: Ana Letícia.)

** Todos os direitos reservados. **

A casa das paredes felizes 

Padrão

Na casa das paredes felizes existem mensagens espalhadas pelos cantos
poesias em cada ponto
histórias em cada quadro

Na casa das paredes felizes os móveis sorriem
o sofá abraça
a cama serve o café da manhã
a sala fala de amores e amigos, toca canções da alma e inventa danças

A casa das paredes felizes já era linda
e ganhou enfeites
mares amarelos
luzes e novas cores
Se embelezou com novos tapetes
taças e até geladeira

E a casa sorriu para a visitante
que só trouxe de presente sua presença
mas ali deixou alguns novos cheiros
sabores
temperos
e algumas surpresas também

A casa ganhou novos carinhos e poemas
se encheu de boas memórias
e doou outras tantas

Eu fui tocada por sua magia
e hoje digo a ela que me aguarde
pois lá deixei algo sem o qual não vivo
meu coração…
… volto para te buscar.

De quando eu vivi

Padrão


Não me lembro mais do tempo em que eu somente existia. O sobreviver era muito mais do que eu mesma poderia me dar. O sorriso engessado, os pés enraizados no chão de concreto, o céu me era inalcançável. Naquele tempo, do qual não me lembro mais, a visão era curta e daltônica, a existência era turva e meu corpo era revestido de uma armadura de minério de ferro, o que tornava difícil o movimento, porém me protegia das intempéries do inverno existencial.

Mas eu quase me lembro com exatidão do dia em que fui tocada por uma luz tão forte que me tornou cega para o que se foi, e me fazia então ver o que se encontrava mais à frente. E por não poder ver o escuro em que antes estivera, passei a inventar cores e ouvir coisas que há muito não ouvia, por puro encantamento. Minha armadura se liquefez e, pouco a pouco, deixei-me deslizar em direção ao sol que me extasiava, me aquecia. E quanto mais perto, mais sorrisos espelhados, sensações inesperadas, abraços surpresa, eu já não temia me queimar. E então descobri que antes eu apenas jazia, e que agora vivo sem arremedos de felicidade, completamente recheada do mais puro brilho estelar, da gargalhada mais gostosa, o tempo a sorrir e minha alma a cantar, cantar, cantar…

Ana.

(Texto e foto: Ana Letícia.)

** Todos os direitos reservados. **

A hora mais bela

Padrão

Na hora mais bela, em que os gatos são pardos, o prenúncio da noite que ainda não é determina o exato instante em que o general caminha de volta pra casa. Leva consigo uma pequena pasta de couro, com documentos da lida diária. Mas o que há dentro da pasta não importa, o que nos interessa é saber que o general caminha com um segredo – que já não é tão secreto assim…

O imponente general é visto por aí com um brilho diferente em seus vivos olhos e um sorriso faceiro que insiste em se fixar… Alguns soldados vinham comentando entre si que o general já não era mais o mesmo, além da farda mais bem passada que o costume, a cada dia aparecia mais perfumado, sempre com um cheiro novo. Teria sido tocado o general por uma doçura suficiente para amolecer seu coração?, pensavam, ingênuos. É que muitos não sabiam que o general, no fundo, não tinha o coração de pedra. Pelo contrário, sua alma era tão poética e amanteigada quanto o mais leve croissant de um café na Rive Gauche. Seu coração era tão grande e macio quanto o mais romântico dos mortais, doce como um pastel de nata, com um toque de canela.

E na hora mais bela, o general caminha leve, levando consigo o sorriso permanente, o brilho que transpassa a alma e ilumina de amarelo as sombras, e o segredo que não é secreto. Fita o horizonte crepuscular procurando pelo irrepetível, pelo tempo que passou e pelo que ainda está por vir, e, estendendo uma das mãos, tenta tocar uma nuvem cor de rosa, como quem tenta prender o tempo que corre por entre os dedos. E então, em resposta, o céu alaranjado, quente como certos lençóis, abraça longamente o general, e uma brisa suave toca seus cílios, lambe a ponta de seu nariz, beijando seu rosto e sussurra mais um segredo em seus ouvidos: “Permita que o poeta em mim não cesse…”.

O general em silêncio contemplativo permanece, iluminado pela própria luz que irradia, abala o inabalável explicando o inexplicável ao descompassado e insensato coração, assoviando um fado alegre sobre a vida, bela, dela.

Ana.

(Texto e foto: Ana Letícia.)

** Todos os direitos reservados.**

O filme que nunca existiu

Padrão


Antecipo o beijo, o cheiro, e meu peito se retrai e expande num contínuo, como se o sentisse. A voz ecoa na mente e evoca sentimentos até então adormecidos, gerando imagens de um filme que nunca existiu, mas que poderia muito bem estar em cartaz naquele pequeno cine decadente do centro da cidade. Todo esse movimento de sobe e desce em meu plexo, provocado pela mente inerte – porém, prolífica – gera a energia que me aquece na noite de cama gelada e pés de picolé, assim como o esperado toque da sua letra em meus lábios, anunciado entre palavras não ditas. Imagino pétalas e lágrimas de água doce, sinto cheiro de madeira recém cortada, noz-moscada e melão, e quase sinto sua mão repousando sobre a minha. Quase posso ler seus pensamentos, mas não me permito entrar e nem quero entender todos os seus processos, nem perder o encanto se eu descobrir como se formou o seu algo a mais – pelo qual me encantei. Não, os pensamentos que já me revela por sua livre escolha nas entrelinhas são suficientes para me ensinar que o encantamento ocorre simplesmente porque nos reconhecemos, em nossas semelhanças e diferenças, como dois seres que desejam um amor de cinema, com direito a trilha sonora e um por do sol antes do anúncio do fim, um filme tão bom que não se quer parar de assistir, ou daqueles que, de tão favoritos, se assiste três vezes num dia só, e que a música dos créditos é cantarolada e que recebe uma salva de palmas todas as vezes em que as luzes da sala de projeção se acendem. E queremos tudo isso sem ensaios, sem teste de iluminação, sem roteiro e direção, a não ser dos protagonistas da madrugada em que não se dorme e que os sorrisos se multiplicam…

Ana.

(Texto e foto: Ana Letícia.)

** Todos os direitos reservados. **

O prenúncio

Padrão

BlurExisto, antes do prenúncio. Anuncio antes do fim o sentir de cada ponto, o que um dia eu fui. O que sou hoje é o retrato da mocidade que ainda existe em mim, persiste apesar do tempo inexorável.
Não me permito mais brincar com sentimentos, não tolero mais certas coisas, me afasto do que me faz mal. Já armei defesas contra ataques que nem existem, e com isso me fechei num paradoxo existencial que se iniciou com palavras, ou com a ausência delas.
Sou contraditória e prolixa – mas há quem goste. Ando por aí com a sensibilidade de uma pétala, minha mente viaja em bolhas de sabão, balões de gás sobrevoando a Capadócia – ou qualquer outro lugar distante e maravilhoso do mundo –  em sementes sopradas de um dente de leão, flutuando em jardins desconhecidos.
Aprecio quem sabe se deleitar com os pequenos gestos, os minúsculos momentos de alegria, tornando-os maiúsculos, por isso faço riso do meu choro, fotografo o vento e o brilho das sombras, e envio meu fôlego perdido por correspondência – há quem o receba.
Não perca seu tempo, me dizem constantemente. E se não sei o que fazer com ele, o meu tempo? E se eu já perdi tempo demais? Apenas ele, o próprio tempo, me dirá.
A catarse (des)necessária de palavras assegura a (in)sanidade mental, já que ninguém quer ser/estar na média, nem ser totalmente (a)normal, não é mesmo?
Prefiro escrever em linhas tortas a chegar num ponto sem final, e as interrogações são as flores na beira da estrada. Preciso andar mais, só que ando devagar porque já tive pressa, como diz aquela canção, e escolho palavras mesmo sem querer.
Quero que o medo vá embora e que as palavras me escolham. Quero sentir o que nunca senti, quero o acima da média, louco e surreal. Quero o sem sentido, o riso fácil, quero as reticências e muitas exclamações!
Sem ponto final(.)

Ana.

Texto e foto: Ana Letícia.

** Todos os direitos reservados. **

Não sou imune

Padrão

Sabe, eu não estou imune às palavras. Elas são como agulhas perfurando retinas que não se cansam de ler, nem assim, cegas. As palavras  me dizem tanto ou não dizem nada, fico tonta, com a febre de não saber o que fazer.

Sabe, não estou imune ao olhar nos olhos. São como faróis luminescentes, ora reluzem o entorno, ora roubam a luz do que está por perto. Os olhos me encaram, brilhantes, depois correm tímidos para bem longe. Me desafiam a correr atrás, mas o que faço é igualmente me esconder.

Existe um raio-x de palavras? Quero ver o que trazem por dentro do esqueleto de entrelinhas, mergulhar no preto e branco de sua tinta e papel.

Existe vacina para o olhar nos olhos? Quem sabe, os olhos imunizados não se escondem e se deixam escorrer para o oceano de seus olhos de mel.

E então prometo não jogar o seu jogo de meias palavras ou palavras inteiras pela metade.

E então prometo esquecer a imunidade

E não fugir.

Ana.

(Texto e foto: Ana Letícia)

** Todos os direitos reservados **

O outro

Padrão

O outro chega e me aconchega
Só quero afundar em seu peito
Acarinhar para sempre seus cabelos
Conversar até o infinito e além
Sentir seu abraço me derreter
Em um momento que antecede o beijo
Em que sua barba me espeta carinhosamente
E sua respiração coincide com meu descompasso.
E então sentir-me-ei entregue e indefesa
Aterrorizada pela impossibilidade
Do choque de realidade de não poder
E então me frustrarei
E me recolherei
Na dor de nunca ser.
Dois pássaros voando
Desejo de criar asas…

Pássaros

Ana.

Texto e foto: Ana Letícia.
* Todos os direitos reservados *

Espetáculo

Padrão

2015/01/img_7740.jpg
Sobrevivi aos saltos, joelhos roxos, ansiedade da estreia, aos olhares da plateia.
A dança me comove e me move, me mantém viva, me suspende no ar, segura o meu salto.
Flutuo sem direção, giro num dos pés, escolho meu ponto para fixar, calço as pontas, esqueço da dor, me cego com as luzes, fito a platéia – uma massa inerte que observa – procuro suas reações, prendo a respiração, e a dança vem e me mostra o chão, me traz para a realidade, me inspira, expiração, me domina.
Conto os tempos e compassos, ouço a música, e o sentimento de simplesmente estar toma conta, uma hora se transformasse em um minuto, e nada mais importa.
Ao soarem os aplausos, ao se acenderem as luzes, ao abrir os olhos, não há corpo cansado, apenas a noite, a maquiagem para tirar, alguma purpurina e sapatilhas usadas…
Encosto a fantasia de um lado, e num lapso volto à outra realidade de ser estar fazer…
O espetáculo acabou, mas a dança não saiu de mim.

Ana.

Texto e foto: Ana Letícia.
*Todos os direitos reservados.*