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Tela em branco

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E quando você acha que de tudo já aconteceu na sua vida, que já fez tanto e já conheceu lugares e pessoas de todo tipo, quando você acha que só teria mais uns poucos caminhos possíveis pra seguir adiante, vem a própria vida e te entrega uma tela em branco; então, o que fazer? Há quem procure uma caneta ou lápis de colorir, canetinha hidrocor ou giz de cera, há quem projete imagens animadas e sons, há até quem se cubra com o pano; já eu me jogo, me enrosco, deito e rolo e invento coreografias, figurinos e, então, me permito sonhar na tela grande, e quando me pego assim, sonhando de novo, entendo a grandeza do momento que se descortina a minha frente, o meu “momento tela em branco”; depois dele, o que existe são possibilidades, sonhos dentro de outros sonhos, e entendo que tudo (e nada) que vivi antes me preparou para o que virá, por ser inédito; protagonizo a pré-estreia de algo que ainda não aconteceu, que não sei o que é, pois a tela em branco da minha vida está começando agora.

Ana.

(Texto e foto: Ana Letícia.)

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O filme que nunca existiu

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Antecipo o beijo, o cheiro, e meu peito se retrai e expande num contínuo, como se o sentisse. A voz ecoa na mente e evoca sentimentos até então adormecidos, gerando imagens de um filme que nunca existiu, mas que poderia muito bem estar em cartaz naquele pequeno cine decadente do centro da cidade. Todo esse movimento de sobe e desce em meu plexo, provocado pela mente inerte – porém, prolífica – gera a energia que me aquece na noite de cama gelada e pés de picolé, assim como o esperado toque da sua letra em meus lábios, anunciado entre palavras não ditas. Imagino pétalas e lágrimas de água doce, sinto cheiro de madeira recém cortada, noz-moscada e melão, e quase sinto sua mão repousando sobre a minha. Quase posso ler seus pensamentos, mas não me permito entrar e nem quero entender todos os seus processos, nem perder o encanto se eu descobrir como se formou o seu algo a mais – pelo qual me encantei. Não, os pensamentos que já me revela por sua livre escolha nas entrelinhas são suficientes para me ensinar que o encantamento ocorre simplesmente porque nos reconhecemos, em nossas semelhanças e diferenças, como dois seres que desejam um amor de cinema, com direito a trilha sonora e um por do sol antes do anúncio do fim, um filme tão bom que não se quer parar de assistir, ou daqueles que, de tão favoritos, se assiste três vezes num dia só, e que a música dos créditos é cantarolada e que recebe uma salva de palmas todas as vezes em que as luzes da sala de projeção se acendem. E queremos tudo isso sem ensaios, sem teste de iluminação, sem roteiro e direção, a não ser dos protagonistas da madrugada em que não se dorme e que os sorrisos se multiplicam…

Ana.

(Texto e foto: Ana Letícia.)

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Não sou imune

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Sabe, eu não estou imune às palavras. Elas são como agulhas perfurando retinas que não se cansam de ler, nem assim, cegas. As palavras  me dizem tanto ou não dizem nada, fico tonta, com a febre de não saber o que fazer.

Sabe, não estou imune ao olhar nos olhos. São como faróis luminescentes, ora reluzem o entorno, ora roubam a luz do que está por perto. Os olhos me encaram, brilhantes, depois correm tímidos para bem longe. Me desafiam a correr atrás, mas o que faço é igualmente me esconder.

Existe um raio-x de palavras? Quero ver o que trazem por dentro do esqueleto de entrelinhas, mergulhar no preto e branco de sua tinta e papel.

Existe vacina para o olhar nos olhos? Quem sabe, os olhos imunizados não se escondem e se deixam escorrer para o oceano de seus olhos de mel.

E então prometo não jogar o seu jogo de meias palavras ou palavras inteiras pela metade.

E então prometo esquecer a imunidade

E não fugir.

Ana.

(Texto e foto: Ana Letícia)

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